O Sacrifício de Jesus e a Lógica Mosaica em Hebreus

David M. Moffitt

Pedro Silva
Lecionário

--

Igreja de Grundtvig, Copenhague, Dinamarca

David M. Moffitt (PhD, Duke University) é professor de Novo Testamento na University of St Andrews, St Andrews, Reino Unido. Ele é o autor de Atonement and the Logic of Resurrection in the Epistle to the Hebrews (Brill 2011), Rethinking the Atonement: New Perspectives on Jesus’s Death, Resurrection, and Ascension (Baker Academic 2022) bem como vários artigos, ensaios e capítulos de livros sobre Hebreus e outros textos e questões do Novo Testamento.

Este artigo é um dos capítulos do livro Understanding the Jewish Roots of Christianity: Biblical, Theological, and Historical Essays on the Relationship Between Christianity and Judaism (Lexham Press, 2021), organizado por Gerald McDermott

Nada parece ilustrar até que ponto Hebreus marca uma ruptura no desenvolvimento do cristianismo primitivo longe de suas raízes judaicas do que o aparente repúdio do autor à aliança mosaica e seu sistema sacrificial/cultual. A lógica, o sacerdócio e os sacrifícios da aliança mosaica são frequentemente interpretados como tendo sido substituídos em Hebreus por algo inovador e definitivo em Jesus. Susan Haber, por exemplo, argumenta que a própria ideia da nova aliança em Hebreus tem uma lógica antijudaica em seu núcleo. Haber critica especialmente a maneira como Hebreus liga a inauguração da nova aliança com a morte expiatória de Jesus [1]. Ela não está sozinha ao ver o argumento de Hebreus como representando uma ruptura definitiva com as raízes judaicas do cristianismo primitivo [2].

Claramente, Hebreus reconhece diferenças entre a aliança mosaica e a nova aliança. Claramente, também, essas diferenças incluem uma transformação das práticas de culto, até porque Jesus é mostrado como um sacerdote legítimo, apesar de não ser da tribo de Levi, conforme exigido pela lei mosaica (Dt 18: 1–5), mas da de Judá (Hb 7:14; 8:4). Mas essas diferenças indicam uma rejeição por parte do autor das raízes judaicas do cristianismo primitivo? Este ensaio visa mostrar que as interpretações de Hebreus que assumem um repúdio ou rejeição do Judaísmo não percebem com precisão a lógica da aliança em ação em Hebreus. A concepção de hebreus da nova aliança pressupõe analogias importantes e abrangentes entre o sacrifício de Jesus e a nova aliança, por um lado, e os sacrifícios e a aliança mosaica, por outro.

Elementos chave da nova aliança e do ministério de Jesus dentro dela funcionam em Hebreus não por meio da rejeição dos sacrifícios ou da lógica cultual da aliança mosaica, mas por analogias cuidadosas com essa aliança e seu culto. Essas analogias podem ser vistas especialmente na atenção de Hebreus à apresentação de Jesus de si mesmo ao Pai no céu como o sacrifício final, bem como nas maneiras como Hebreus desenvolve dois elementos importantes do ministério sacrificial de Jesus:

  • (1) A morte de Jesus, que não apenas liberta o povo de Deus das garras do pecado, mas também inaugura a nova aliança.
  • (2) A ascensão de Jesus, que possibilita sua contínua obra de intercessão como sumo sacerdote no santuário celestial.

A atenção a esses aspectos da obra salvífica de Jesus em Hebreus sugere que o autor os correlaciona com a inauguração da aliança mosaica e os meios pelos quais essa aliança foi mantida. Ou seja, Hebreus trabalha com uma compreensão da nova aliança que é inaugurada, mas não repudia e revoga a aliança mosaica. Hebreus, com certeza, vê Jesus e a nova aliança como superiores ao que veio antes. No entanto, ao perceber que Hebreus se apoia nos elementos cruciais da história inaugural da aliança mosaica, assim como em aspectos da lógica e prática cultual dentro dessa aliança, torna-se evidente que as reflexões de Hebreus sobre Jesus estão mais alinhadas com as raízes judaicas do cristianismo primitivo do que comumente se supõe

TRÊS SUPOSIÇÕES CENTRAIS

Antes de nos voltarmos para Hebreus em si, três suposições centrais sobre o sacrifício e a aliança mosaica precisam ser identificadas e discutidas brevemente.

Em primeiro lugar, trabalho aqui com a suposição de que o sacrifício levítico consistia em um processo que, quando envolvia uma vítima animal, não era redutível ao ato de abater a vítima. A ideia comum hoje de que sacrifício é igual a algo sendo morto não se alinha com as Escrituras ou práticas judaicas. O sacrifício, como os textos bíblicos o descrevem, consiste em múltiplos elementos que trabalham juntos para formar todo um processo. A conclusão desse processo era necessária para que se alcançassem os objetivos do sacrifício [3]. Está claro na Bíblia que se alguém simplesmente matasse um animal, nenhum sacrifício ocorria. Animais teriam sido mortos em casas/fazendas regularmente durante o período do Segundo Templo, mas os judeus da época não pensariam nisso como sacrifício. Para que um sacrifício fosse entregue a Deus, um animal tinha que ser abatido no local apropriado da maneira apropriada. De acordo com o Pentateuco, isso significava levar o animal para o tabernáculo quando os israelitas estavam no deserto (e mais tarde, para o templo, quando o povo estava na terra e o templo foi construído). Uma vez no tabernáculo (ou templo) os animais eram abatidos ao lado do altar externo do holocausto, em seu lado norte (por exemplo, Lv 1:11)[4].

Dado que muitos hoje simplesmente assumem que os animais foram realmente mortos em altares de sacrifício, deve-se enfatizar aqui que, de acordo com os textos bíblicos, nenhum animal foi morto em qualquer um dos altares do tabernáculo israelita (ou mais tarde no templo). Em vez disso, quando uma vítima animal era abatida, os sacerdotes coletavam seu sangue em uma tigela. Eles então levavam partes do animal e seu sangue para os vários altares, dependendo do sacrifício oferecido (por exemplo, Lv 1:10–13; 4:3–12).

Altares, portanto, não eram locais de abate no sistema cultual mosaico. Os altares eram, ao contrário, os lugares onde os elementos sacrificais eram transferidos para a presença de Deus e onde o uso e a aplicação desses elementos produziam certos benefícios para os espaços e pessoas envolvidas. A transferência do sacrifício a Deus envolvia os sacerdotes se aproximarem da presença de Deus, aproximando-se de altares em espaços progressivamente mais sagrados (o altar externo no pátio, o altar de ouro do incenso no lugar santo e, uma vez por ano no Dia de Expiação, através do véu interior para espargir o sangue sobre a tampa da arca da aliança no santo dos santos) [5]. As partes do animal eram oferecidas a Deus queimando-as no altar externo e/ou aplicando sangue do animal em partes dos altares, dependendo novamente do tipo de sacrifício que estava sendo oferecido [6]. Porque aproximar-se dos altares envolvia aproximar-se da santa presença de Deus na terra, as atividades sacerdotais nos altares marcavam as ações mais pesadas ou importantes no processo — a entrega ou transferência das ofertas a Deus [7]. Além disso, quando os sacrifícios eram oferecidos com o propósito de fazer expiação, esse objetivo era alcançado depois que o sacerdote queimava partes do corpo do animal e aplicava seu sangue no(s) altar(es). Essas atividades eram essenciais para que a expiação ocorresse. Realizar todo o conjunto de atividades constituía o sacrifício e efetuava a expiação (veja, por exemplo, Lv 4:20, 26, 31, 35).

Todo o processo que acabamos de esboçar, portanto, constituía um sacrifício. A atenção ao sacrifício como um processo, no entanto, implica que a ideia central do sacrifício não era que algo fosse morto, embora isso fosse fundamental em muitos dos sacrifícios. Mas, a ideia central era que algo fosse entregue a Deus para certos propósitos. Uma das principais maneiras pelas quais uma vítima sacrificial era entregue a Deus era transformando tudo ou partes dela em fumaça no altar externo de bronze. Essa fumaça subia até Deus e lhe agradava. É por isso que o texto muitas vezes fala que a fumaça era um aroma agradável para Deus (por exemplo, Lv 1:9, 13, 17).

Para resumir essa primeira suposição, o sacrifício consistia em um processo ritual — uma série de etapas que culminavam na entrega do material do sacrifício a Deus como uma oferta agradável. O abate fazia parte de muitos, embora não de todos os sacrifícios judaicos (por exemplo, Lv 2:1–16; 23:13). O ato do abate não era, porém, o centro ou a soma total do processo. Muitas coisas aconteceriam após o abate, que envolvia a atividade dos sacerdotes nos diversos altares que faziam parte do complexo do tabernáculo/templo. No cerne da eficácia do sacrifício estava a presunção de que Deus aceitaria a oferta. Os benefícios decorrentes do sacrifício dependiam de o processo ser conduzido integralmente. O simples abate de um animal, portanto, não era considerado um sacrifício, nem por si só um evento que proporcionasse os benefícios (como a expiação) que um sacrifício visava alcançar.

Minha segunda suposição diz respeito à dinâmica relacional do sacrifício. Se os pontos anteriores estiverem corretos, então o sacrifício era obviamente um aspecto de um relacionamento. Havia, em outras palavras, um contexto relacional dentro do qual os sacrifícios levíticos pertenciam e funcionavam significativamente. A categoria bíblica para essa relação é “aliança”. O sacrifício levítico funcionava como uma expressão do relacionamento entre Deus e Seu povo, inserido na estrutura da aliança mosaica. Um momento de reflexão sobre os sacrifícios expiatórios corrobora e esclarece essa observação. Os sacrifícios expiatórios eram dados pelos suplicantes como um meio de restaurar seus relacionamentos com Deus quando algo sobre eles ou algo que eles fizeram ou deixaram de fazer causava um problema. Os sacrifícios expiatórios eram, em outras palavras, um dos meios ordenados por Deus para corrigir problemas que surgiam dentro do relacionamento da aliança (como pecados) [8], o pecado causava problemas entre Deus e o pecador de tal forma que eles não podiam morar juntos em paz. As chamadas ofertas pelo pecado e, de forma mais completa, os rituais do Dia da Expiação eram os principais meios dentro da aliança para resolver os problemas criados pelo pecado. Em outras palavras, os sacrifícios expiatórios, como as ofertas pelo pecado, existiam como um dos principais meios para manter o relacionamento da aliança diante dos problemas que inevitavelmente surgiam. Assim, os sacrifícios levíticos eram uma parte fundamental da dinâmica relacional da vida dentro da aliança mosaica.

Minha terceira suposição decorre da segunda. O sacrifício levítico fazia sentido dentro da aliança. A aliança foi o próprio contexto dentro do qual o sacerdócio e o tabernáculo (e mais tarde o templo) foram revelados e estabelecidos. Se, no entanto, isso for verdade, segue-se que a aliança teve que ser inaugurada antes que os meios de culto para adoração e manutenção da aliança pudessem ocorrer. De fato, é exatamente assim que o livro de Êxodo descreve a situação. Correndo o risco de ser excessivamente redutora, a narrativa do Êxodo se desdobra da seguinte forma: primeiro o povo de Deus teve que ser libertado de sua escravidão. Isso aconteceu na Páscoa [9]. Então Deus fez sua aliança com eles no Sinai. Só então foi montado o tabernáculo com seus vários altares e apetrechos, e os sacerdotes ordenados para servir dentro daquele espaço sagrado. Em suma, a inauguração do sacerdócio e do tabernáculo seguia e dependia da inauguração prévia da própria aliança mosaica [10], de uma maneira que se alinhou corretamente com suas contrapartes celestiais [11].

Dediquei um tempo para expor essas três suposições porque, como explico a seguir, esse relato judaico do sacrifício e a dinâmica relacional da aliança parecem ser assumidos pelo autor de Hebreus. Volto, então, a explorar esses pontos em Hebreus, começando com uma discussão do sacrifício de Jesus como um processo e não como um evento singular redutível à crucificação.

O PROCESSO DO SACRIFÍCIO EM HEBREUS

Se o que foi dito acima sobre o sacrifício ser um processo que não atinge seu ápice na morte da vítima, mas na aproximação dos sacerdotes à presença de Deus para trazer os elementos da vítima até ele está correto, e, se esta compreensão do sacrifício era conhecido pelo autor de Hebreus, então, ao contrário das opiniões de muitos dos intérpretes modernos de Hebreus, pode-se esperar que o autor argumente que o sacrifício de Jesus tem que envolver mais do que apenas sua morte na cruz. Na verdade, é exatamente isso que o autor argumenta. Considere os seguintes pontos. Em Hebreus, após sua morte e ressurreição, diz-se que Jesus passou pelos céus e entrou no tabernáculo celestial. Lá ele aparece diante do Pai e serve como o grande sumo sacerdote de seu povo (veja, por exemplo, Hb 4:14–16; 8:1–4; 9:24–26).

A ênfase de Hebreus na ascensão de Jesus ao santo dos santos do tabernáculo celestial é uma de suas características mais distintivas (6:19–20; 9:7, 11–14). Mas por que o autor enfatiza esse ponto? Aqui, parece-me, que está a resposta: Hebreus supõe que, assim como o sumo sacerdote na terra sob a aliança mosaica era obrigado a levar o sangue dos sacrifícios expiatórios ao santo dos santos para oferecê-lo a Deus a fim de expiar para o povo (veja Hb 13,11, onde o autor afirma explicitamente este ponto), assim também Jesus, para fazer expiação por seu povo, não deve ser simplesmente a vítima abatida, mas também deve levar os elementos de seu sacrifício, seu próprio sangue e carne, na presença de Deus no santo dos santos celestial para se oferecer a Deus. Hebreus, isto é, não reduz o sacrifício de Jesus ao evento de sua morte. Antes, por analogia com Levítico, e o Dia da Expiação em particular, o sacrifício expiatório de Jesus culmina com sua entrada no santo dos santos celestial, onde ele se oferece ao Pai. É isso que Hebreus 9:24–26 quer dizer quando fala de Jesus entrando no céu e aparecendo diante do Pai. Se preenchermos algumas das lacunas, aqui está o que esses versículos dizem:

Pois Cristo não entrou nos lugares santos que foram feitos por mãos, [os da terra] que correspondem aos verdadeiros. Em vez disso, [ele entrou] no próprio céu para que agora possa aparecer diante da face de Deus por nós. Ele não [entrou nos lugares santos celestiais] para que pudesse se oferecer repetidamente, como o sumo sacerdote [terrestre] entra nos lugares santos [terrestres] ano após ano com o sangue de outro. Se fosse esse o caso, seria necessário que Cristo sofresse repetidamente desde a fundação do mundo. Mas agora, ele apareceu [no santo dos santos celestial] uma vez para sempre na consumação dos séculos, a fim de realizar o perdão dos pecados pelo sacrifício de si mesmo.

Em outras palavras, assim como os sumos sacerdotes terrenos entravam no santo dos santos na terra uma vez por ano para santificar o povo por meio da oferta do sangue sacrificial a Deus, assim também Jesus entrou no santo dos santos celestial uma vez para sempre para santificar seu povo por meio de apresentar-se ao Pai como o último sacrifício expiatório. A entrada pós-ressurreição de Jesus no santo dos santos celestial, onde ele se oferece ao Pai em nosso favor, é o momento em que ele oferece seu sacrifício a Deus.

Assim sendo, a compreensão hebraica acerca do sacrifício de Jesus transcende a mera morte do Messias ou o abate da vítima. O autor de Hebreus demonstra um cuidado notável ao considerar o sacrifício de Jesus como um processo abrangente, alinhando-o cuidadosamente com a prática dos sacrifícios judaicos. Este enfoque meticuloso permite ao autor integrar aspectos cruciais da vida de Jesus — notadamente sua morte, ressurreição e ascensão — dentro do contexto mais amplo do ritual sacrificial judaico.

De maneira significativa, o entendimento do autor de Hebreus sobre o sacrifício se assemelha à descrição encontrada em Levítico. Em ambos os casos, o sacrifício é concebido não como um evento momentâneo, mas como um processo mais amplo que atinge seu clímax no ato de se aproximar da presença de Deus e na apresentação dos elementos sacrificiais diante Dele.

Vale a pena observar que a ideia de que o sacrifício de Jesus é sinônimo de sua morte na cruz é profundamente problemática não apenas para um relato judaico de sacrifício, mas também para o alcance maior da encarnação do Filho divino. A ideia de que o Filho divino deixou a presença do Pai para se tornar Jesus encarnado, oferecendo seu sacrifício na terra fora do santuário celestial, parece incongruente à luz das representações dos sacrifícios levíticos, especialmente os do Yom Kippur, e contradiz as primeiras afirmações cristãs sobre o retorno de Jesus à presença celestial de Deus.

Como mencionado anteriormente, a aproximação a presença de Deus é uma característica central da descrição do sacrifício em Levítico, atingindo seu ápice no Dia da Expiação, quando o sumo sacerdote adentra o santo dos santos para oferecer o sangue sacrificial. Se o sacrifício de Jesus for restrito apenas à cruz, seria necessário postular que Jesus estava simultaneamente na terra e no céu no momento de sua morte, o que tornaria sua ressurreição corporal dispensável. Ou ainda, implicaria que o Filho divino se distanciou do Pai para oferecer seu sacrifício fora do espaço sagrado do tabernáculo celestial, uma concepção que contradiz a lógica e a prática do sacrifício judaico ao exigir que o Filho se movesse na direção oposta, afastando-se de Deus, ao oferecer seu sacrifício expiatório.

Contudo, ao reconhecer que a extensão da encarnação em Hebreus não culmina na morte do Filho, mas sim no retorno do Filho ressuscitado, agora como o Messias glorificado e sumo sacerdote, à presença do Pai, a narrativa se alinha de forma coesa com a lógica e prática do sacrifício judaico. A ascensão de Jesus ao santo dos santos celestial para oferecer seu sacrifício ao Pai é, do ponto de vista judaico, uma progressão natural e coerente no entendimento do sacrifício.

Diante disso, a discussão anterior pode levantar a seguinte indagação: Se o sacrifício de Jesus é um processo que culmina em sua aproximação ao Pai para oferecer-se no santo dos santos celestial a fim de efetuar a expiação, qual é então o significado da morte de Jesus? Seria a morte meramente um acontecimento terreno, um passo preparatório para o verdadeiro sacrifício?

A MORTE DE JESUS É INSIGNIFICANTE EM HEBREUS?

A primeira coisa a dizer em resposta a tal pergunta é que se o entendimento moderno comum do sacrifício como sendo pouco mais do que o ato de matar uma vítima está errado do ponto de vista tanto do relato bíblico do sacrifício em Levítico quanto do modo como Hebreus reflete sobre o sacrifício de Jesus, então esse entendimento comum está simplesmente errado. Pode ser que as suposições cristãs contemporâneas sobre o sacrifício de Jesus em particular, precisem ser repensadas se for importante para os cristãos modernos que elas se alinhem com a evidência dos textos bíblicos discutidos acima.

A segunda coisa a dizer, no entanto, é que a resposta à questão levantada acima é não, por pelo menos duas razões. Primeiro, se o relato do sacrifício mencionado acima estiver correto, então pode-se ver que o abate da vítima é uma parte constituinte de um sacrifício de sangue, mesmo que o abate não seja por si só suficiente para constituir um sacrifício ou alcançar os benefícios expiatórios do sacrifício. O mesmo, é claro, pode ser dito da apresentação dos elementos do sacrifício a Deus. Isso por si só também não é suficiente para constituir um sacrifício. Todo o processo é necessário, não apenas algumas partes do processo. Seria melhor reconceber a palavra “sacrifício” em termos do processo mais amplo de oferecer algo a Deus.

Outra breve tangente deve ser seguida aqui. Dados os pontos anteriores, seria perfeitamente legítimo falar de uma morte sacrificial sem querer implicar que tal morte fosse a soma total do sacrifício. Além disso, se alguém falasse metonimicamente sobre sacrifício, faria todo o sentido falar de algum aspecto do sacrifício (por exemplo, abate, sangue, aspersão, queima, apresentação) com referência ao todo. Pode-se, por exemplo, falar do sangue como uma metonímia para todo o processo de sacrifício. Esse tipo de coisa é uma maneira comum de falar sobre totalidades maiores. Por exemplo, pode-se hoje falar em “ficar atrás do volante”. Esta é uma maneira perfeitamente compreensível de falar sobre todo o processo de dirigir um carro. Ficar atrás do volante pressupõe todas as muitas coisas que se precisa fazer para operar um veículo motorizado. Se, com base em tal metonímia da linguagem cotidiana, alguém reduzisse o ato de dirigir apenas a sentar-se ao volante, o relato resultante de dirigir um carro seria redutivo ao extremo, até sem sentido. Algo semelhante a essa redução absurda ocorre quando, a partir de textos que falam da morte em termos sacrificial, o sacrifício é assumido hoje como redutível apenas ao ato de abate/morte.

Seja como for, Hebreus não se concentra apenas na crucificação de Jesus. Este texto cristão primitivo contempla não apenas a morte na cruz, mas também a ressurreição e a subsequente ascensão de Jesus ao santo dos santos celestial [12]. Ali Jesus apresenta seu sacrifício, que consiste em seu próprio corpo ressuscitado, na presença do Pai. Hebreus, em outras palavras, reconhece que o sacrifício envolve um processo que culmina na aproximação de Deus. A partir desta perspectiva, a morte de Jesus pode ser entendida como um sacrifício, mas não é a soma total de seu sacrifício.

Há, no entanto, uma segunda razão pela qual a morte de Jesus não é meramente um evento terreno ou insignificante em Hebreus. Especificamente, Hebreus compara a morte de Jesus aos eventos que levaram ao estabelecimento da aliança mosaica — a Páscoa e a inauguração da própria aliança. A discussão que se segue retoma a segunda e a terceira suposições expostas acima e as desenvolve em relação à argumentação de Hebreus. Começo com uma discussão sobre a morte de Jesus em Hebreus.

A MORTE DE JESUS COMO A PÁSCOA E A INAUGURAÇÃO DA NOVA ALIANÇA EM HEBREUS

A morte de Jesus é explicitamente dita em Hebreus 2:14–15 para funcionar como o meio pelo qual ele destrói o diabo e liberta a semente de Abraão de sua escravidão ao medo da morte, um poder que o diabo exerceu sobre eles. Muitos comentaristas não percebem que Hebreus está aqui comparando a morte de Jesus com a primeira Páscoa, o evento que libertou o povo de Deus de sua escravidão no Egito. Uma série de argumentos podem ser reunidos para defender este ponto [13], mas um dos mais convincentes é a própria progressão de Hebreus.

Pouco depois de enfatizar os efeitos libertadores da morte de Jesus no final de Hebreus 2, o autor prossegue em Hebreus 3:1–6 para comparar Jesus a Moisés, aquele a quem Deus usou para libertar seu povo do Egito. Ele então, o mais revelador de tudo, compara seus leitores com a própria geração de israelitas que foram libertados na primeira Páscoa e viajaram para o deserto. Hebreus 3–4 compara e contrasta o público original do autor com a geração do deserto. Eles devem pensar em si mesmos como vivendo no deserto enquanto esperam para entrar na herança final que Deus lhes prometeu. O autor se baseia na narrativa mais ampla do Pentateuco para ajudar a moldar a identidade de seus leitores [14] Eles são como Israel quando Deus os libertou da escravidão e eles viajaram no deserto para o Sinai. Em Hebreus, a morte pascal de Jesus é o evento que libertou o povo de Deus de sua escravidão ao diabo. Eles agora, portanto, encontram-se em um novo tempo e lugar semelhantes ao deserto. Hebreus 3–4, com sua discussão sobre Israel no deserto, segue perfeitamente a afirmação do autor em Hebreus 2 de que Jesus libertou seu povo do poder que os mantinha em escravidão.

Mas a morte de Jesus não funciona em Hebreus apenas como um novo momento da Páscoa. A morte de Jesus também está associada ao evento que, como a inauguração da aliança mosaica em Êxodo 24:8, inaugura a prometida nova aliança de Jeremias. Notavelmente, Jeremias 31:32 interliga o êxodo com o estabelecimento da aliança mosaica.. Deus aqui fala através do profeta Jeremias sobre fazer sua aliança com seu povo “no dia em que eu os tomei pela mão para tirá-los da terra do Egito” (Jr 31:32). Da mesma forma, Hebreus liga a morte de Jesus, o evento que liberta o povo de Deus da escravidão ao diabo (Hb 2:14–15), com o evento que inaugura a nova aliança quando o autor compara a inauguração da aliança mosaica em Êxodo 24 com a morte de Jesus em Hebreus 9:15–20.

A morte de Jesus em Hebreus, portanto, funciona de maneira análoga aos eventos que foram centrais para o estabelecimento da aliança mosaica. Sua morte liberta a semente de Abraão de sua escravidão ao diabo, assim como a Páscoa foi o meio para libertar o povo de Deus do Egito (ver Hb 2:14–15; 11:28). Além disso, com base em Êxodo 24 e Jeremias 31, a morte de Jesus também é vista como inaugurando a prometida nova aliança com a casa de Israel e a casa de Judá.

Estas são as principais maneiras em Hebreus que a morte de Jesus funciona para salvar seu povo. Se isso estiver correto, no entanto, mais uma vez fica claro que Hebreus não abandonou as categorias judaicas de pensamento. Em vez disso, os elementos centrais da lógica e narrativa da aliança mais ampla encontrados nas Escrituras judaicas são retomados por Hebreus e aplicados à morte de Jesus, aquele que o autor confessa ser o Cristo.

Assim, a morte de Jesus não é o locus de seu sacrifício em Hebreus. No entanto, é essencial para a salvação que o autor acredita que Jesus torna possível para seu povo. Há, no entanto, mais a ser dito sobre a oferta de sacrifício e ministério de Jesus em Hebreus.

A ASCENSÃO DE JESUS E A MANUTENÇÃO DA NOVA ALIANÇA EM HEBREUS

Após a inauguração da aliança no Sinai, Moisés estabeleceu o tabernáculo, ordenou o sacerdócio e supervisionou o início dos sacrifícios levíticos. Tudo isso serviu como meio central para adoração e manutenção do relacionamento da aliança.

Aqui, também, Hebreus pensa de maneiras que se alinham com essas dinâmicas da aliança. Observei acima que a ascensão de Jesus, sua passagem pelos céus (Hb 4:14), foi o momento em que ele entrou no tabernáculo celestial e ali se ofereceu como sacrifício ao Pai no santo dos santos celestial (Hb 9:24 -26). Depois de se apresentar ao Pai, sentou-se à direita do Pai (Hb 1:3; 10:12–13). Hebreus, no entanto, não visualiza Jesus sentado em silêncio no trono celestial aguardando seu tempo até que todas as coisas sejam colocadas sob seus pés (Hb 10:13). Em vez disso, ele está servindo ativamente em seu ministério de sumo sacerdote (ver Hb 7:25; 8:1–2). Especificamente, ele agora está perpetuamente intercedendo por seu povo. Jesus, Hebreus 7:25 afirma: “é capaz de salvar completamente o seu povo, porque vive sempre para interceder por eles”. O autor visualiza o Jesus ressuscitado e ascendido, que é tanto o sumo sacerdote quanto o sacrifício agora na presença de Deus, orando ativamente por seu povo no santo dos santos celestial.

Mas por que ele está ali intercedendo? A lógica de Hebreus continua a seguir a do serviço sacrificial dos sacerdotes sob a aliança mosaica. Observei acima que Jesus, que é o grande sacrifício pelos pecados, está mantendo a nova aliança para seu povo fazendo o que se poderia presumir que o sumo sacerdote terrestre fazia quando entrava anualmente no santo dos santos — intercedendo junto a Deus em favor de seu povo.

Deve-se dizer que há muito pouca evidência positiva para deduzir que os judeus do Segundo Templo pensavam que o sumo sacerdote intercedia pelo povo quando aspergia o sangue sacrificial no santo dos santos. Hebreus pode aqui fazer uma nova ligação neste ponto entre a associação comum da oferta de sacrifícios e oração e a presença contínua de Jesus como sumo sacerdote e sacrifício no santo dos santos [15]. Notavelmente, no entanto, há algumas evidências sugerindo que outros judeus da época pudessem pensar no sumo sacerdote orando quando estava ministrando no santo dos santos. Filo oferece evidências claras de tal tradição em seu texto conhecido como De Legatione ad Gaium (Da Embaixada a Gaius). Este texto fala do sumo sacerdote entrando no santo dos santos “uma vez por ano apenas no Jejum, como é chamado [isto é, o Dia da Expiação], para oferecer incenso e orar de acordo com a prática ancestral por um suprimento completo de bênçãos e prosperidade e paz para toda a humanidade” (Legat. 306) [16]. Filo não mencionar aqui a aspersão de sangue, mas a referência ao sumo sacerdote orando enquanto ele está no santo dos santos é reveladora. Esta afirmação parece atestar a suposição lógica de que enquanto o sumo sacerdote ministra no santo dos santos, ele intercede pelo mundo. Esta é uma compreensão do ministério do sumo sacerdote que o autor de Hebreus compartilha por Jesus, o sumo sacerdote no santo dos santos celestial, descrito como intercedendo ativamente por seu povo (Hb 7:25).

Se alguém questiona por que a intercessão contínua de Jesus é necessária, a lógica que Hebreus pressupõe é que essa é uma das maneiras pelas quais ele pode “salvar completamente o seu povo” (Hb 7:25). Dado que Hebreus consistentemente localiza a salvação no futuro (veja, por exemplo, Hb 1:14; 3:14; 6:11–12; 9:28; 10:25, 36; 11:39–40; 13:14), a idéia de que a intercessão contínua de Jesus possibilita a plena salvação de seu povo sugere que ele está continuamente fazendo algo que contribui para a futura obtenção da salvação. A intercessão de Jesus está de alguma forma contribuindo para a salvação futura de seu povo [17]. Tal relato do ministério sumo sacerdotal de Jesus se alinha bem, sugiro, com a noção explorada acima de que sacrifício e ministério sacerdotal tinham a ver com a manutenção do relacionamento entre Deus e seu povo na aliança mosaica. Ou seja, Hebreus parece assumir a necessidade contínua do ministério de sumo sacerdote de Jesus precisamente porque, como na aliança mosaica, este é o meio pelo qual aqueles que pertencem à nova aliança podem ser mantidos na aliança de modo que eventualmente possam receber a herança de sua salvação.

CONCLUSÃO

Em suma, quando se admite que Hebreus trabalha com uma noção de sacrifício que não é redutível a um único evento, como a execução da vítima, mas envolve um processo que culmina em trazer os elementos do sacrifício à presença de Deus, torna-se claro que Hebreus não visualiza a morte de Jesus como a soma total de seu sacrifício expiatório. Em vez disso, Hebreus pensa em termos da morte, ressurreição, ascensão e retorno de Jesus, em termos de sacrifício, sumo sacerdócio e expiação. Essa perspectiva permite reconhecer que diferentes partes do processo mais amplo do sacrifício de Jesus contribuem de diferentes maneiras para a salvação que ele torna possível para seu povo. Hebreus pode, deste ponto de vista, ser visto trabalhando com a história maior da redenção de Deus de Israel, bem como com conceitos muito judaicos de sacrifício ao refletir sobre Jesus e a nova aliança. A morte de Jesus é o meio não apenas para libertar o povo de Deus da escravidão ao diabo, mas também para inaugurar a prometida nova aliança de Jeremias. Sua ascensão é o meio pelo qual Jesus entra no santo dos santos celestial para se apresentar ao Pai e servir como o grande sumo sacerdote que sempre intercede junto ao Pai para garantir a salvação completa e final de seu povo.

Concluo com algumas reflexões sobre Hebreus e expiação. Uma das grandes questões que alguém enfrenta ao tentar oferecer uma teologia da expiação do Novo Testamento diz respeito às maneiras pelas quais a formação judaica dos autores do Novo Testamento informou suas reflexões sobre o assunto. A maneira como as festas da Páscoa e o Dia da Expiação se relacionam com a obra salvífica de Jesus é um dos enigmas mais difíceis. Isso ocorre não apenas porque esses dois dias santos são inspirados e aplicados a Jesus no Novo Testamento, mas também porque eram duas observâncias muito diferentes com práticas e objetivos muito diferentes. Da perspectiva das Escrituras Judaicas, não é uma simplificação excessiva notar que a Páscoa não é sobre expiação e o Dia da Expiação não é sobre libertação da escravidão [18]. Como é, então, que os primeiros cristãos podiam conceber a obra expiatória de Jesus tanto em termos semelhantes à Páscoa como em termos semelhantes ao Dia da Expiação?

Quando se supõe que toda a obra expiatória de Jesus está pendurada na cruz, é difícil ver como esses dois dias santos poderiam ser combinados sem recorrer à metáfora de modo a remodelar de maneiras quase irreconhecíveis, talvez até repudiar, os fundos judaicos e bíblicos dos quais as imagens foram desenhadas. Acredita-se que os primeiros cristãos, por esse motivo, tenham escolhido a dedo uma variedade de imagens e ideias diferentes, até mesmo incomensuráveis, para explicar a grande variedade de coisas que experimentaram e pensaram que a crucificação realizou para eles [19].

As reflexões anteriores de Hebreus sugerem, no entanto, um caminho diferente a seguir. Em vez de presumir que os primeiros cristãos pensavam que toda a obra salvífica que Jesus fez em favor deles era redutível à sua morte, como se esse evento fosse a única coisa que importasse, Hebreus aponta para outra solução. Se o próprio Jesus é considerado o centro da salvação, não a cruz ou a morte de Jesus, então toda a história de sua encarnação, incluindo sua vida após a ressurreição e ascensão, pode ser vista como algo que contribui ou torna a salvação possível. O perdão duradouro oferecido pela nova aliança não se basearia apenas no evento passado da crucificação. A morte de Jesus, firmemente ligada na tradição com a Páscoa, claramente pode ser vista como salvífica, particularmente porque foi vista como o evento que obteve a libertação da escravidão e inaugurou a nova aliança. Esses são elementos importantes de um relato teológico maior da expiação. A confissão cristã primitiva de que Jesus estava agora ausente de seu povo porque ressuscitou dos mortos, passou pelos céus e foi exaltado à mão direita do Pai permite, no entanto, pode explorar outro ângulo — Jesus pode ser entendido como um novo sumo sacerdote que entrou na presença de Deus para apresentar ali a sua oferta de sacrifício. Este aspecto de Yom Kippur da pessoa e obra de Jesus efetua o perdão e a purificação mesmo quando Jesus continua a ministrar ao Pai em favor de seus irmãos e irmãs, aqueles que esperam pelo retorno de Jesus e a recepção de sua herança. Por esse motivo, a ascensão de Jesus e o ministério contínuo de sumo sacerdote podem ser vistos como os meios de culto que mantêm a nova aliança.

Sua intercessão contínua garante o perdão duradouro e a purificação de seu povo, principalmente porque seu ministério nunca pode ser interrompido pela morte. A abordagem da questão mais ampla da expiação que acabamos de esboçar tem o benefício adicional de mostrar como pelo menos algumas reflexões cristãs primitivas sobre o assunto continuaram a se basear em suas raízes judaicas. Hebreus, ao refletir sobre quem é Jesus e o que ele fez e está fazendo para tornar a salvação possível, trabalha de maneiras que se baseiam e ressoam com os eventos e a lógica cultual da aliança mosaica. De fato, quando as analogias discutidas acima entre a nova aliança e a aliança mosaica são corretamente reconhecidas, essa difícil palavra de exortação pode ser vista como refletindo sobre a morte, ressurreição e ascensão de Jesus de maneiras que desafiam e refrescam a reflexão cristã contemporânea sobre Jesus e a expiação, inclusive chamando tal reflexão de volta às suas raízes judaicas.

NOTAS BIBLIOGRAFICAS

[1] Susan Haber, “From Priestly Torah to Christ Cultus: The Revision of Covenant and Cult in Hebrews,” JSNT 28 (2005): 105–24.

[2] Destaco aqui apenas alguns exemplos adicionais. Harold W. Attridge comenta: “A noção de que o cristianismo havia substituído a tradição cultual israelita é uma pressuposição da Epístola aos Hebreus… os cristãos têm acesso à realidade última”. Veja Attridge, “Christianity from the Destruction of Jerusalem to Constantine’s Adoption of the New Religion: 70–312 EC,” in Christianity and Rabbinic Judaism: A Parallel History of Their Origins and Early Development, ed. Hershel Shanks (Washington, DC: Biblical Archaeology Society, 1992), 151–94, aqui 170. J. Christian Beker argumenta que, ao apelar para as Escrituras judaicas, a metodologia de Hebreus mostra que o autor pensa que as instituições judaicas foram revogadas por Jesus. Ele escreve: “Uma epístola que usa tipologia — se não alegoria — para celebrar a singularidade do sumo sacerdócio de Cristo de tal forma a demonstrar como superior contra o contraste do inferior dificilmente pode agradar a qualquer leitor judeu … [Esta epístola] não opera simplesmente na modalidade de continuidade/cumprimento, mas também na de descontinuidade/abolição”. Veja Beker, “The New Testament View of Judaism”, em Jews and Christians: Exploring the Past, Present, and Future, ed. James H. Charlesworth(New York: Crossroads, 1990), 60–69, aqui 66–67, ênfase adicionada. Anders Runesson chega a sugerir que Hebreus pode representar um exemplo dos primeiros crentes judeus em Jesus que escolheram viver sua fé como se fossem gentios. Veja Runesson, “Rethinking Early Jewish-Christian Relations: Matthean Community History as Pharisaic Intragroup Conflict”, JBL 127 (2008): 95–132, aqui 102.

[3] Roy E. Gane descreve bem essa dinâmica: “Como os sistemas em geral, os rituais são estruturados hierarquicamente, com sistemas menores constituindo totalidades incorporadas em sistemas maiores. Em cada nível, um “todo possui propriedades emergentes distintas — propriedades não possuídas pelas partes que compõem o todo”. Um ritual ou complexo ritual atinge seu objetivo somente se for realizado em sua totalidade, com suas atividades na ordem adequada”. Veja Gane, Cult and Character: Purification Offerings, Day of Atonement, and Theodicy (Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 2005), pp. 19–20.

[4] Em outros lugares em Levítico, diz-se que os animais são abatidos na entrada da tenda da reunião (por exemplo, Lv 3:2). Os animais foram abatidos fora da tenda que compunha os dois santuários. Isso aconteceu ao lado do altar de bronze do holocausto, localizado na entrada da tenda da reunião (o altar dentro da tenda era o altar de ouro do incenso, por exemplo, Lv 4:7, 18). Em vários pontos, Levítico direciona os leitores de volta a 1:11 ao falar do abate de vítimas (por exemplo, Lv 4:24, 33; 14:13).

[5] Isso, pelo menos, é o que o texto bíblico presume que ocorreu em Yom Kippur. Visto que a arca foi perdida na época do segundo templo, parece que o sumo sacerdote aspergiu sangue sobre a pedra onde a arca teria repousado no primeiro templo (ver m. Yoma 5:2–4).

[6] Compare, por exemplo, todo o holocausto dado por um indivíduo, em que o sangue da vítima foi derramado contra os lados do altar externo e todo o animal foi queimado (Lv 1:1–13), com a chamada oferta pelo pecado dada pelo sacerdote ungido (isto é, o sumo sacerdote). Neste último, um pouco do sangue era aspergido dentro da tenda e aplicado nas pontas do altar de incenso ali localizado. O sangue restante era então derramado na base do altar externo. A gordura, os rins e parte do fígado eram então queimados no altar externo. Finalmente, o resto da carcaça eraqueimada fora do acampamento (Lv 4:1–12).

[7] Ver novamente Roy Gane, que comenta: “Em hebreus, a ideia de ‘sacrifício’ em geral é transmitida pelo substantivo qorban…. O significado de qorban está associado ao do verbo Hiphil da mesma raiz qrb (lit., ‘fazer chegar perto’), que pode se referir não apenas ao transporte preliminar de material de oferenda para o local do ritual (por exemplo, [Lev] 1:3), mas também à apresentação ritual formal ao Senhor (por exemplo, [Lev] 1:5, 13). Esta apresentação formal transfere algo para o Deus santo para sua utilização. Assim, um qorban (“sacrifício, oferta de sacrifício”) torna algo sagrado entregando-o ao domínio sagrado de Deus.” Gane, Leviticus, Numbers, NIV Application Commentary (Grand Rapids: Zondervan, 2004), 78, ênfase original.

[8] Levítico 4:1–2 fala do problema de fazer inadvertidamente algo que a lei mosaica diz para não fazer. Parte da solução do problema é oferecer certos sacrifícios. O restante do capítulo dá instruções específicas para as ofertas específicas que devem ser feitas, dependendo das pessoas envolvidas no pecado (veja 4:3, 13, 22, 27).

[9] A Páscoa era um sacrifício que diferia de várias maneiras dos sacrifícios normais oferecidos no sistema levítico. Do ponto de vista da narrativa bíblica, a primeira Páscoa ocorreu antes da inauguração da aliança, da escolha dos sacerdotes e da construção do tabernáculo. Mais tarde, no texto bíblico, a Páscoa é incorporada à prática cultual normal, tanto em termos de localização (ver Dt 16:1–8) quanto em termos de manipulação do sangue em relação ao altar externo (ver 2 Cr 35:11, que descreve os sacerdotes o sangue da Páscoa contra os lados do altar externo, assim como eles fizeram com outros sacrifícios [por exemplo, Lv 1:5; 3:2; 7:2; 17:6]). No final do período do Segundo Templo, a Páscoa ainda podia ser vista como significativamente diferente dos outros sacrifícios. Filo, por exemplo, explica claramente as diferenças entre a Páscoa e outros sacrifícios em termos do fato de que a Páscoa foi celebrada pela primeira vez antes dos levitas serem selecionados para o sacerdócio e antes da construção do templo (QE 1.10). Assim, ele também diz que toda a nação agiu como os sacerdotes na Páscoa, com cada família sendo como um templo (Spec. Leis 2.145–149). Filo aparece aqui para oferecer evidências de que os cordeiros da Páscoa foram mortos e comidos em toda a diáspora e não apenas no templo de Jerusalém. Ainda mais tarde, alguns dos rabinos debatem por que a Páscoa é um sacrifício, dadas suas características distintivas. A resposta dada é que o sangue é manipulado, como é o caso de outros sacrifícios (ver Sifre 128–29).

[10] Um certo tipo de leitura direta e sequencial do Pentateuco sugere que Deus primeiro fez sua aliança com seu povo no Sinai e depois lhes deu o tabernáculo, o sacerdócio e os sacrifícios dentro do contexto desse relacionamento. Nem todo judeu do Segundo Templo pensava dessa maneira sobre esses assuntos. Nos Jubileus, por exemplo, a aliança no Sinai é a mais completa de muitas expressões anteriores da aliança de Deus com Israel. Jubileus pega as várias alianças em Gênesis (como a aliança com Noé) e as atrai para uma aliança com Israel. Veja a discussão em James C. VanderKam, Jubileus 1: A Commentary on the Book of Jubilees Chapters 1–21, Hermeneia (Minneapolis: Fortress, 2018), 54–57. Jubileus é capaz, portanto, de retrojetar elementos do sacrifício levítico de volta a relatos anteriores de sacrifício na narrativa bíblica. Ao fazer a aliança entrar em vigor antes do Sinai, o relato dos Jubileus tem o efeito de abordar as possíveis questões que podem surgir em relação aos sacrifícios descritos em Gênesis, sacrifícios que ocorreram antes da instituição do tabernáculo e do culto levítico no Sinai.

[11] A exortação de Deus a Moisés para ter certeza de fazer tudo de acordo com o padrão que ele viu na montanha (Êx 25:40) contribuiu para a especulação sobre um tabernáculo ou templo celestial no Judaísmo do Segundo Templo. A citação desta passagem em Hb 8:5 se encaixa bem no contexto dessa especulação mais ampla.

[12] Muitos intérpretes modernos minimizam ou negam a importância da ressurreição de Jesus em Hebreus. Tenho argumentado extensivamente que isso é um erro. Este é o cerne do argumento da minha monografia, Atonement and the Logic of Resurrection in the Epistle to the Hebrews, NovTSup 141 (Leiden: Brill, 2011). Para uma breve apresentação do que considero os argumentos mais importantes para este caso, veja David M. Moffitt, “Blood, Life, and Atonement: Reassesing Hebrews’ Christological Appropriation of Yom Kippur,” in The Day of Atonement: Its Interpretations in Early Jewish and Christian Traditions, ed. Thomas Hieke e Tobias Nicklas, Themes in Biblical Narrative Series 15 (Leiden: Brill, 2011), 211–24.

[13] Eu ofereço um argumento mais detalhado para esta conclusão em David M. Moffitt, “Modeled on Moses: Jesus’ Death, Pessach, and the Defeat of the Devil in the Epistle to the Hebrews”, em Mosebilder: Gedanken zur Rezeption einer literarischen Figur im Frühjudentum, frühen Christentum und der römisch-helenistischen Literatur, ed. M. Sommer et al., WUNT 390 (Tübingen: Mohr Siebeck, 2017), 279–97.

[14] Apresento um argumento mais completo para este caso em David M. Moffitt, “Wilderness Identity and Pentateuchal Narrative: Distinguing between Jesus’ Inauguration and Maintenance of the New Covenant in Hebrews”, em Muted Voices of the New Testament: Readings nas Epístolas Católicas e Hebreus, ed. Katherine M. Hockey, Madison N. Pierce e Francis Watson, LNTS 565 (Londres: Bloomsbury T&T Clark, 2017), 153–71.

[15] Para um argumento para este ponto, veja especialmente o ensaio de Nicholas J. Moore intitulado “Sacrifice, Session, and Intercession: The End of Christ’s Offering in Hebrews”, JSNT 42, no. 4 (2020): 521–41.

[16] Filo, On the Embassy to Gaius; General Indexes, trans. F. H. Colson, Loeb Classical Library(Cambridge: Harvard University Press, 1962).

[17] Para uma argumentação mais completa e detalhada, veja David M. Moffitt, “It Is Not Finished: Jesus’ Perpetual Atoning Work as the Heavenly High Priest in Hebrews”, em So Great A Salvation: A Dialogue on the Atonement in Hebrews, ed. . Jon Laansma et al., LNTS 516 (Londres: Bloomsbury T&T Clark, 2019), 157–75.

[18] As diferenças entre a Páscoa e o Dia da Expiação não se limitam simplesmente aos rituais muito diferentes dos quais cada um consiste. A Páscoa é uma celebração da proteção dos primogênitos do “destruidor” (Êx 12:23) e da libertação do povo de Deus da escravidão. Conforme observado acima, a Páscoa foi celebrada pela primeira vez antes mesmo da inauguração da aliança mosaica. Como a Páscoa não estava originalmente associada ao tabernáculo ou aos altares (segundo a narrativa bíblica, estes ainda não existiam), ela não funcionava como um sacrifício que perdoava pecados ou purificava o povo (ou seja, a Páscoa não era expiatória). O Dia da Expiação, no entanto, era todo para efetuar o perdão anual e a purificação do povo, bem como do espaço do tabernáculo/templo e acessórios.

[19] Veja, por exemplo, Jeffrey S. Siker, “Yom Kippuring Pessach: Recombinant Sacrifice in Early Christianity”, em Ritual and Metaphor: Sacrifice in the Bible, ed. Christian A. Eberhart, Resources for Biblical Study 68 (Leiden: Brill, 2011), 65–82. Siker argumenta que os primeiros cristãos refletiram sobre a morte de Jesus em termos de Páscoa e Yom Kippur. Ele conclui: “A indefinição dessas duas tradições resultou em uma espécie de ritualização recombinante dentro do cristianismo primitivo, em que o cordeiro pascal e o bode expiatório do Yom Kippur foram fundidos na reflexão cristã como um comentário sobre a morte fiel de Jesus em nome do pecado humano.” (81). Hebreus, Siker argumenta ainda, comete o erro de “literalizar” metáforas anteriores usadas para ajudar a explicar o significado do sacrifício de Jesus (ver esp. 82).

VEJA TAMBÉM

Lei Mosaica, Pureza e Perfeição em Hebreus, David Moffitt

Uma Leitura Pós-Supersessionista de Hebreus, Jesper Svartvik

Hebreus e a Lei Judaica, Matthew Thiessen

Moffitt, D M 2022, Exodus in Hebrews. Exodus in the New Testament . Library of New Testament studies, Bloomsbury T&T Clark, London.

Pierce, M. N. (2023). The World Spoken Through the Son: Divine Speech and Creation in the Epistle to the Hebrews. Journal for the Study of the New Testament, 46(1), 37–58. https://doi.org/10.1177/0142064X231190083

Moffitt, D M 2016, Serving in the tabernacle in Heaven : sacred space, Jesus’s high-priestly sacrifice, and Hebrews’ analogical theology, Hebrews in contexts. Ancient Judaism and early Christianity, vol. 91, Brill, p. 259–279. https://doi.org/10.1163/9789004311695_015

Livros

Vídeos

Podcasts

--

--